O Gaio
Por Tiago Dagall
Vem o Natal, e com ele doze noites escuras de tempo sem tempo até aos Reis, onde a epifania surge, e com ela as portas se abrem para um novo ano... estamos em 2017.
E 2017 começa com uma significativa mudança. Subtil, pois apenas muda o nome, mas significativa pelo que essa mudança representa e pelo peso que uma palavra pode ter, e tem.
O nome Movimento Terra Queimada agradava-me imenso! Ao contrário de outras opiniões que fui ouvindo ao longo do tempo em que faço parte do Movimento, de que o nome Terra Queimada era "negativo" ou "pesado", a mim agradava-me. Agradava porque punha o dedo na ferida, porque nos fazia reflectir sobre uma realidade. Uma realidade dificil de engolir, é certo, mas ainda assim uma realidade, a dos incêndios e da devastação que fica após os mesmos. E uma realidade para a qual creio que era (e ainda é!) crucial chamar a atenção... a da Terra, queimada, exposta, negra, em cinzas, sem vida (à superficie). O fogo, esse, existe e existirá, é elemento vital e parte do sistema. Destroi para transmutar. Mata para regenerar. Leva tudo às cinzas de onde a fénix se ergue. Mas (e dizem por aí, há sempre um mas...) está descontrolado neste País à beira mar plantado. É um grande problema de enormes proporções o dos incêndios, da floresta portuguesa e da gestão territorial. E chamar ao Movimento de Terra Queimada até podia ser forte, chocar, perturbar, mas era precisamente isso que me agradava, porque acabava a ser um abre-olhos, um alerta para esse problema, um motivo de reflexão! Assim, sem rodeios, um olhar sobre o que É...
Mas a vida não pára, e a seguir ao incêndio a vida desponta e a floresta renasce. Lembro de ver o verde começar a rasgar na Freita nas linhas de água pouco tempo após os incêndios. Como lembro também de largas manchas de roxo no meio das cinzas, presente de umas flores das quais não sei o nome. Tudo volta a fazer-se sentir...e o Gaio a fazer-se ouvir!
Fiquei feliz com este nome, muito feliz! Gosto do Gaio. Exerce um certo fascinio sobre mim, e o tempo pára quando os vejo, quando os oiço. Um corvideo, de forte personalidade, atento, barulhento, de bonitas cores. O familiar colorido do negro corvo.
Mais ainda porque este nome também me traz boas memórias. Estávamos em meados de Novembro de 2016, lua cheia, uma super lua, enorme e brilhante, como já não havia assim há umas décadas, diziam os entendidos. E eu, na Serra da Freita, estava na Ameixieira com o "mestre aprendiz" Bernd. Cuidávamos de árvores, da floresta. Entre trabalho radical de arrancar silvas (desculpa Bernd por mandar vir o tempo todo até entender o porquê de estarmos a fazer aquilo), lançar sementes em encostas periclitantes fragilizadas pelos incêndios, e cuidar de pequenas árvores no viveiro, frente à lareira o Bernd falou do Gaio. Da sua admiração por ele, o Gaio, esse amigo do semeador de árvores e florestas. "Bandido!", "Ladrão!" dizem alguns do Gaio por ele esperar pela oportunidade em que possa levar bolotas que se recolheram. Mas não o Bernd, não! Homem atento, inteligente, observador, perspicaz. Comenta comigo, em frente à lareira, de como o Gaio é para ele um amigo. De como gosta de deixar bolotas de propósito para que o Gaio as leve... é que é verdade que ele as leva, sim, e isso é sabido, mas também é sabido (e o Bernd sabe-o!) que enterra-as para mais tarde lhes servirem de alimento. Como também sabe que se esquece de onde enterrou uma boa parte delas. E dessas, uma boa parte vai germinar, e dar origem a um carvalho! Que melhor aliado pode ter um semeador de florestas? Aquilo que à primeira vista pode parecer "mau" (o "bandido" que rouba bolotas), para o observador atento e que não se precipita a tirar conclusões acaba a ser uma vantagem. O suposto ladrão afinal acaba a ser um semea-dor.......................................[momento de reflexão].................................
o Gaio, o belo Gaio! E assim passamos algum tempo, entre outras histórias, a falar do Gaio, e da importância que ele pode ter no sistema (ou organismo como o Bernd gosta de lhe chamar, ao invés de sistema). Hora de dormir. Dia seguinte, de manhã, estou eu no viveiro a passar nogueiras para couvets, e o Gaio ouve-se! "Será que o Bernd o ouviu?" penso eu cá para os meus botões...pergunta parva, é o Bernd, claro que ouviu. Passado um bocado chega à minha beira a dizer que já tinha estado "lá mais em baixo" a deixar bolotas para o Gaio. Ahh, bem que ele tinha dita no dia anterior que o faria! Homem de palavra este, integro e sábio, ora então. E eu presencio tudo isto, e vibro com o momento, com o Gaio, com o Bernd, com as árvores, com a lua cheia, com a vida! E volto para casa, feliz!
E o tempo passa, e o ano começa com a noticia de que o Movimento Terra Queimada passou a chamar-se Movimento Gaio, e a minha alma vibra novamente... pela evolução, pelo nome, pela memória daquele Novembro de lua cheia, pelo Gaio, por ter estado a ouvir o Bernd falar sobre o Gaio e perceber intuitivamente o que ele me dizia, e por assistir a esta regeneração da Terra Queimada.
E porque o foco determina a realidade e a energia segue a atenção, alegra-me o foco e atenção postos no Gaio e o seu papel no Organismo Vivo maior que é a floresta, e ultimamente o planeta. Que o Movimentos Gaio e os seus ajudantes Gaios (corvideos e humanos) continuem a semear árvores pela Serra fora é o que desejo...
Os plantadores de oxigênio
Primeira plantação do ano no Baldio da Ameixieira
A primeira plantação do ano de 2017 no Baldio da Ameixieira, Serra da Freita, aconteceu com a participação de 55 voluntários mais 5 crianças entre os 5 e 9 anos. Nunca antes atingimos tanta aderência como neste domingo de 22 de Janeiro. A catástrofe que assolou esta serra, em Agosto do Verão passado, gera agora uma onda de solidariedade como nunca visto!
Chegaram as faias
Começou-se com uma pequena formação, pois é essencial ensinar a plantar bem as árvores. Depois das duas últimas plantações do ano anterior nos Seixos Brancos, arrancamos agora para o lado esquerdo, uma área muito particular, mesmo mágica. Este terreno foi preparado com antecedência pelo Bernardo Markowsky, Gilberto Lamoso e Luís Pedro Matos. Usando moto-serra, cortaram os troncos de giestas e pinheiros queimados, que depois foram empilhados.
Com a colaboração de jovens universitários do Porto do Projeto VO.U. Pela Natureza, do Projecto Pista Mágica - Escola de Voluntariado, Geoparque de Arouca e de todas as pessoas que apareceram nessa manhã fria mas solarenga, plantamos mais de 600 árvores nativas entre elas: carvalho alvarinho, carvalho negral, sobreiro, bétula, medronheiro, faia, sabugueiro, nogueira, acer pseudoplatanus, celtis australis, pereira brava (Pyrus bourgaeana), pinheiro manso, folhado, teixo, azevinho, 1 pilriteiro e cipreste.
Porque plantamos estas espécies neste terreno?
Primeiro: todas, excepto o teixo, pinheiro-manso e cipreste, são árvores de folha caduca. As suas folhas caiem no outono/inverno, decompõem-se, criando assim um subsolo fértil e húmido e os seus sistemas radiculares funcionam como esponjas, fornecem um serviço natural importantíssimo: a retenção da água. Vamos por partes: a bétula é uma espécie pioneira, cresce em solos fracos, gosta de estar junto de outros indivíduos da mesma espécie, criam por baixo das suas copas um espaço sombrio que não permite crescer mato. Com as bétulas, plantadas numa distância de dois metros, queremos criar faixas de contra-fogo, tanto como os ciprestes. O carvalho alvarinho (robur) é a árvore mais emblemática das antigas florestas portuguesas. Foi largamente dizimado na época dos descobrimentos para construir naus. Uma soma, na base dum desenho de construção desse tempo revelou que, para construir uma nau eram precisos dois a quatro mil carvalhos. Durante esta época foram abatidos mais de 5.000.000 quercus robur. Esta perda nunca foi substituída. A floresta portuguesa estendeu-se das montanhas mais altas até ao mar. "O nosso país não tinha pedra à mostra, como as serra despidas de agora. Quando a floresta é incendiada ou derrubada, todo o solo vai embora" (Jorge Paiva). O carvalho negral é uma espécie do mesmo gênero, mas endémica na Península Ibérica, que se encontra nos sítios mais altos. A faia é uma árvore de alto porte que desenvolve copas densas, provavelmente com a folhagem mais abundante de todas as espécies europeias. No baldio da Ameixieira, a três quilómetros de distância, há um pequeno ajuntamento de altas faias que mostram as suas valias: um subsolo fofo como uma almofada. Esta espécie precisa de terra húmida e profunda que se encontra, para nosso deleite, no espaço onde a plantamos. Escolhemos o sítio mais alto, para as faias crescidas deitarem a folhagem para baixo. O acer pseudoplatanus que se encontra abundantemente nos Viveiros da Granja, é uma espécie de plena luz que em poucos anos produz sementes. Por isso o plantamos no lado oposto, também num solo profundo, mas no alto do vale que desce para o riacho. Aí, podem criar uma mancha própria. A nogueira é também considerada uma espécie pioneira. Plantamos num solo profundo acima do caminho, para que as nozes caiam e se acumulem. Acima, no lado esquerdo, num solo mais fraco, plantamos medronheiros, muito juntos num arco, que vai criar um tipo de sebe para atrair os pássaros. Junto plantamos as pereiras bravas (Pyrus bourgaeana) que também irão dar frutos. O teixo é uma espécie em via de extinção porque é venenoso. A Teresa e o Eduardo são admiradores desta árvore, por isso foi plantado. "Até o Robin Hood casou-se à sombra dum teixo. Segundo os Druidas, contra todo o preconceito, era considerada a árvore da imortalidade." diz a Teresa.
Esta imagem mostra o problema
Esta imagem em cima considero significativa. Nem apenas por mostrar o enorme espaço ardido à volta da plantação. Do meu ponto de vista, os incêndios do verão de 2016, os que destruíram uma enorme quantidade de vida, queimaram também as cortinas. Agora temos em frente dos nossos olhos a negligência e o abandono da serra durante décadas. Há uma enorme quantidade de giesta queimada, uma espécie da sucessão de incêndios e troncos de pinheiros queimados com 6 anos da idade. Tudo isto está bem visível, tanto como a falha política na gerência da floresta portuguesa. Temos uma obra hercúlea para realizar.
A nossa amiga África, uma plantadora de futuro.
Conhecemos melhor alguém quando trabalhamos lado a lado pela mesma boa causa. O envolvimento e simpatia destes amig@os voluntári@os é contagiante o que contribui para o bom sucesso deste trabalho de reflorestação. Estas parcerias são uma boa oportunidade de estabelecer sintonias e continuar a consolidar o caminho para uma bolsa de voluntariado ambiental.
Queremos que todos saibam reconhecer o valor das Florestas Nativas de Portugal para que as futuras gerações ainda as possam conhecer e usufruir delas.
Até à próxima plantação, dia 12 de Fevereiro no mesmo local na Serra da Freita, Baldio da Ameixieira.
Bem hajam!
O ano 2016 - olhando para trás e seguindo em frente
Um ano intenso em todos os sentidos
31 Dezembro 2016:
Notas do diário da Teresa Markowsky sobre as jornadas de trabalho, vigilância florestal e intervenções do Movimento Terra Queimada/ Gaio.
O ano de 2016 foi intenso em questões de trabalho ambiental e envolvimento de voluntários. Devido ao flagelo dos incêndios florestais neste verão passado, surgiu uma onda solidária.
Gente jovem da aldeia vizinha da Ameixieira, Santa Maria do Monte, forma-se num movimento “Matéria Prima” para ajudar a reflorestar as áreas ardidas no Vale da Raíz. Das cinzas surge a esperança do renascer e a consciência da mudança. Um novo futuro emerge na Serra da Freita para plantar a nova floresta nativa e combater os incêndios florestais.
16 Janeiro- entrega de bolas de sementes aos caminhantes do Clube de Campismo de S.João da Madeira para serem lançadas em Rio de Frades, numa área ardida.
23 Janeiro- começo da construção do viveiro local na Ameixieira
30 Janeiro- reunião sobre os “Passadiços do Rio Paiva” no espaço PAN. Preparação dum manifesto para ser entregue na C. M. de Arouca com assinaturas do: M.T.Q, Campo Aberto, PAN, Mais Democracia, Quercus.
14 Fevereiro- II. plantação nos Seixos Brancos; adensamento da plantação feita em Dezembro de 2015,
1 Março- o viveiro está preparado para receber as novas plantas que foram doadas pelo Projeto Floresta Comum. Preparação de novas sementeiras.
5 Março- lançamento de bolas de sementes nos Viveiros da Granja.
6 Março- reunião no baldio da Ameixieira com a presença do eng. Manuel Rainha
12 Março- participação numa jornada de trabalho no Cabeço Santo. Plantação, touça nos eucaliptos e limpeza de terreno para futura plantação.
19 Março- alunos e professores da Escola Secundária de Arouca erguem as suas bandeiras de prece nos Seixos Brancos.
22 Março- Bernardo foi com a ASHLI ver o terreno no planalto da Serra da Freita para preparar uma futura plantação.
11 Abril- reunião no FAPAS com o Movimento SOS Estuário do Douro, sobre a contestação da realização do Festival Marés Vivas no Vale de S.Paio, terreno tampão da Reserva Natural Local do Estuário do Douro.
25 Abril - preparação e limpeza num terreno na Ameixieira para futura plantação
1 Maio- manifestação de contestação ao festival Marés Vivas em frente à porta da Reserva Natural Local de Estuário de Douro.
4 Maio- nova reunião no FAPAS onde foi decidido que o Bernardo ia escrever uma carta ao Elton John para este boicotar o festival Marés Vivas
11 Maio- nova reunião no FAPAS. Saiu o comunicado da Quercus contra a realização do festival e a segunda providência cautelar contra a PEV.
3 Junho- a carta do Bernardo ao Elton John sai no jornal "The Guardian" e é feita a mudança do Festival Marés Vivas para o local anterior.
6 Junho- o Vale de S.Paio é arrasado pelas motosserras da C.M.Gaia. Matança do Lagarto-de-Água.
2 Julho- abertura, pelo quarto ano, da vigilância florestal na Serra da Freita, na Casa Paroquial de Cabreiros.
23 Julho- participação no Festival Aldeia Viva em Felgueira com uma exposição fotográfica sobre o nosso projecto ”Semear Vida na Serra da Freita”.
2 Agosto- palestra no Parque de Merendas do Gralheiro sobre o tema “ Os pastores, o gado do vento, o lobo e os fogos florestais”: Intervenientes: MTQ, Grupo Lobo, Eduardo Oliveira, José do Festival Aldeia Viva.
6 Agosto- grande incêndio no planalto da Serra da Freita com início no poste de alta tenção ao pé da casa de eólicas da Iberwind.
7 Agosto- o Vale da Raíz está arder por culpa da falta da manutenção dos caminhos no baldio de Souto Redondo. O incêndio arrasou a nossa plantação dos Seixos Brancos na Ameixieira.
9 Agosto- grande incêndio vindo de Telhe, Janarde chega a Espinheiro e Cando. Todo o planalto da Freita está arder.
10 Agosto- Tebilhão, Cabreiros, Candal, Póvoa das Leiras a arder. Este incêndio teve proporções catastróficas e finalizou em Pedro do Sul, passado uma semana.
6 Setembro- filme documental realizado por um voluntário do MTQ, sobre os incêndios florestais e suas consequências no nosso trabalho de reflorestação durante 4 anos.
8 Setembro- reunião na C.M. S. Pedro do Sul com o vereador do ambiente Pedro Mouro. O MTQ propôs o lançamento imediato de gramíneas na serra e a realização dum projeto de reflorestamento imediato. O total da área ardida nas serras da Freita e Arada no mês de Agosto foi de 24.000 ha.
24 Setembro- ida ao Parque Nacional para apanha de sementes de carvalho. Não encontramos nenhumas.
1 e 2 de Outubro- participação na Festa do Feijão em S.Pedro do Sul com uma oficina de bolas de sementes.
8 Outubro – caminha Solidária na Serra da Freita organizada pelo MTQ e o Clube de Campismo de S.João da Madeira. O dinheiro desta caminhada reverte a favor da construção dum viveiro local com melhores condições e mais amplo.
15 Outubro- participação do MTQ como convidados na Conferência do Cabeço Santo em Águeda.
16 a 18 de Outubro- lançamento de gramíneas na Ameixeira, criação de barreiras com giestas e pedras no estradão Viveiros da Granja-Merujal e manufatura de bolas de sementes.
22 e 23 Outubro- encerramento da Vigilância Florestal com manufatura de bolas de sementes.
29 e 30 de Outubro- participação na Festa da Castanha com uma oficina de bolas de sementes.
19 Novembro- comemoração do Dia da Floresta Autóctone com a oficina de bolas de sementes na Escola Básica de Bom Pastor no Porto.
20 Novembro- III. plantação nos Seixos Brancos, Ameixieira. Tivemos a participação de 41 voluntários e plantamos 870 plantas.
2,3,4 Dezembro- participação do MTQ numa oficina de construção natural da MONTIS.
10 Dezembro- IV plantação nos Seixos Brancos, Ameixieira. Tivemos a participação de mais de 33 voluntários e plantamos 730 plantas.
18 Dezembro- lançamento no Planalto da Serra da Freita de bolas de sementes.
Nos dias de 14 e 28 de Dezembro o Bernardo Markowsky e o Luís Silva cortaram troncos queimados de pequeno porte que foram montados lateralmente no local duma futura plantação.
E assim terminamos este intenso ano de trabalho e luta ambiental.
Teresa e Bernardo Markowsky